Andre Tomazetti
Ninguém chega aos pés de Bolsonaro
E não vai ser difícil provar o nosso ponto.
Calma. O título não tem nada a ver com o conteúdo. É um experimento social. Se você voltar lá no post do Instagram, vai ver que em poucos minutos já apareceu gente para atacar e para defender o personagem da foto sem sequer ter passado por este texto. Você, que está lendo agora, é exceção e já contraria o que as estatísticas que apresento mais abaixo apontam. No nosso pequeno placar de atenção contra impulso, você marca um ponto pro time da seriedade enquanto a maioria segue comentando pelo reflexo do título e da imagem.
A ideia é simples e incômoda. A manchete virou atalho para a opinião e a foto virou atalho para a identidade. Pesquisas mostram que as pessoas dizem valorizar notícia factual e atual, mas na hora de escolher o que consomem priorizam veículos que combinam com o que já pensam, o que transforma a informação em espelho e não em janela. No começo do ano, um levantamento nacional do Pew Research Center (na íntegra aqui) encontrou que 77% dos adultos dizem acompanhar notícias ao menos parte do tempo e 44% dizem buscá-las com frequência, enquanto a maioria considera que para algo ser notícia precisa ser factual (85%), precisa estar atualizado (78%) e precisa ser importante para a sociedade (72%), só que 55% acham importante que suas fontes compartilhem suas visões políticas, o que é pedir fato com filtro ideológico embutido.
A confiança na imprensa vai na direção contrária desse discurso de apreço aos fatos. Um estudo publicado hoje pela Gallup (disponível aqui) registrou a menor confiança da série histórica, com 28% dos entrevistados dizendo ter muita ou razoável confiança na mídia para reportar de forma plena, precisa e justa, uma queda em relação a 31% no ano anterior, com um fosso partidário que ajuda a entender a guerra de bolhas, 88% entre republicanos, 27% entre independentes e 51% entre democratas. A pesquisa foi feita nos EUA e não identifiquei um estudo similar no Brasil, mas qualquer análise empírica que você mesmo fizer ao seu redor vai mostrar que o fit com a nossa realidade é total.
Do lado da oferta, há um deslocamento real no jeito de fazer notícia. Um estudo quantitativo da RAND (disponível aqui) que analisou três décadas de conteúdo em diferentes plataformas mostrou uma migração de um jornalismo mais objetivo e contextual para um formato mais subjetivo, mais apoiado em argumentação e advocacy (nome técnico e bonito para militância) e com maior apelo emocional, com as mudanças mais fortes na TV e no digital e as mais sutis na imprensa escrita.
Do lado da demanda, a psicologia explica a cena que você viu no Instagram. Estudos feitos por cientitas políticos e comunicólogos têm documentado a tal negação seletiva, esse hábito humano de rejeitar informações verdadeiras quando contrariam o que acreditamos e aceitar sem muita resistência informações fracas quando confirmam nossa visão, e um estudo da Universidade de Stanford de 2024 (aqui, pra quem quiser checar) resumiu de forma direta que o alinhamento político costuma pesar mais do que a verdade na avaliação de notícias, com os participantes mais propensos a desacreditar informações verdadeiras que desafiam seu lado do que a rejeitar informações falsas que o favorecem.
No Brasil o mecanismo é o mesmo, ainda que os rótulos mudem. Quem se identifica com a esquerda tende a preferir veículos assumidamente alinhados à esquerda e quem se identifica com a direita se sente em casa em veículos alinhados à direita, não é regra de pedra e não cabe generalizar como se todo mundo fizesse isso o tempo todo, mas é padrão forte o bastante para moldar o fluxo do que lemos, do que compartilhamos e do que passamos a acreditar cinco minutos depois. Quando a audiência premia o conteúdo que confirma, a redação que precisa de audiência ajusta a mira, nasce o círculo vicioso que reforça bolhas, empobrece a conversa pública e transforma adversário em inimigo na velocidade de um arrastar de dedo, e o resultado é um debate raso e barulhento em que política vira torcida organizada e divergência legítima vira rótulo de ocasião.
O experimento lá do Instagram serve para mostrar esse atalho mental em ação. Quem comenta sem ler joga o jogo da pressa e da identidade. Quem leu até aqui furou a primeira camada da bolha e mostrou que ainda existe espaço para desacelerar, pesar argumentos e separar notícia de opinião antes de apertar enviar no comentário. A saída começa pequena, com escolhas individuais e com método nas redações, ler além do título, procurar o estudo original quando alguém diz que a pesquisa provou, alternar deliberadamente as fontes para ouvir o contraditório, exigir transparência de apuração e correções, recuperar a ambição de falar com quem discorda sem trata-los como caricatura, publicar links e dados de base, devolver espaço ao contexto em vez de caçar bordões, medir qualidade com régua de precisão e não só com contagem de curtidas.
O título que você viu era só um espelho. Não era sobre Bolsonaro, era sobre nós. Se a política anda mais burra é também porque estamos consumindo conteúdo do jeito mais fácil e comentando do jeito mais rápido. Hoje o placar ficou um a zero para você que leu. Amanhã a gente vê se dá para transformar esse gol isolado em jogo de volta e, quem sabe, em campeonato.
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